Categoria: Cartões de Pagamento
Mastercard anuncia o fim dos números no cartão — e talvez do cartão em si.
O anúncio da Mastercard vai muito além de tirar os 16 dígitos do plástico: representa o início do fim do próprio cartão físico como protagonista.
No novo modelo, tudo será tokenizado. Cada pagamento — seja em loja física ou online — será feito com identidades digitais seguras, armazenadas em carteiras como Apple Pay, Google Pay ou no app do banco.
A autenticação será biométrica e o número real do cartão nunca circulará. O plástico passa a ser opcional ou apenas um backup, substituído por tokens únicos e invisíveis ao usuário.
No Brasil, essa mudança faz todo sentido: temos Pix, smartphones e consumidores digitais.
O futuro dos pagamentos será sem dígitos — e, aos poucos, também sem cartão.

Matéria de Larissa Maia, publicada em 12/09.25, no Valor Invest, sob o título “Com cartões ‘black’, cooperativas acirram busca por clientes; Vale ter?”

Na semana passada, fui surpreendido por uma matéria cujo título chamava atenção: “Uso do Pix estimulou aceitação de cartão de débito, mostra estudo.” Intrigado — e de certa forma incomodado — com a conclusão, decidi ir à fonte. Afinal, será que o Pix realmente estimulou o uso do cartão de débito? Resolvi investigar.
Fui procurar o estudo original e finalmente tive acesso ao documento publicado em setembro de 2024 no site do Banco Central do Brasil, com o título “Payment Technology Complementarities and their Consequences in the Banking Sector: evidence from Brazil’s Pix”.
O trabalho é assinado por José Renato Haas Ornelas, economista do Banco Central do Brasil e professor da FGV, em parceria com Matheus C. Sampaio, pesquisador da Kellogg School of Management da Northwestern University, nos Estados Unidos. Trata-se de um estudo robusto, com metodologia sofisticada e que traz contribuições relevantes para o entendimento do Pix e seus efeitos. Ainda assim, algumas das conclusões divulgadas na imprensa precisam ser vistas com cautela.
O Pix é, sem dúvida, uma das maiores inovações do sistema financeiro brasileiro de todos os tempos. Em apenas 4 anos, transformou a forma como pessoas e empresas movimentam dinheiro, reduziu drasticamente o uso de papel-moeda e se consolidou como o meio de pagamento mais popular do país.
O estudo em questão conclui que o Pix é complementar, e não substituto, de outros meios de pagamento; que teria impulsionado a aceitação do cartão de débito; que estaria associado a maior bancarização e acesso ao crédito; e que até funcionaria como mecanismo de seguro informal em momentos de crise, como enchentes. São achados relevantes, mas que merecem análise cuidadosa, sobretudo quando olhamos para o contexto histórico e social em que o Pix foi lançado.
Três pontos merecem atenção::
- O contexto ignorado: a pandemia da Covid-19
O Pix foi lançado em novembro de 2020, em plena pandemia da Covid-19. Esse detalhe é decisivo. A crise sanitária transformou radicalmente os hábitos de consumo e pagamento no Brasil.
Com lojas físicas fechadas, milhões de brasileiros passaram a comprar pela internet. Até então, o comércio eletrônico aceitava basicamente cartão de crédito e boleto. O cartão de débito não fazia parte dessa realidade. Foi nesse ambiente que o e-commerce explodiu, que empresas se digitalizaram às pressas e que programas de auxílio emergencial abriram milhões de contas digitais.
Ignorar esse choque histórico enfraquece a hipótese central do estudo — a de que, “se nada tivesse mudado além do Pix, os efeitos observados poderiam ser atribuídos a ele.” Na prática, muita coisa mudou. A pandemia, por si só, já explicaria boa parte da aceleração da digitalização financeira.
- A aceitação do cartão de débito: um resultado frágil
O estudo também aponta que um aumento no número de usuários do Pix teria levado a maior aceitação de cartões de débito. Mas a base de dados utilizada não permite sustentar essa conclusão com segurança.
Em vez de transações individuais, os autores tiveram acesso apenas a dados agregados da CIP. Assim, a métrica construída foi binária: se uma empresa realizou ao menos uma venda com cartão, ela passou a ser classificada como “aceitou cartão”. Essa medida não comprova que os consumidores passaram a usar mais o débito, apenas indica que mais empresas registraram alguma transação.
Esse movimento pode ter várias explicações alternativas: maior concorrência entre adquirentes, redução das taxas cobradas, campanhas das bandeiras. Além disso, se o efeito fosse realmente consistente, deveria aparecer também no crédito — mas não houve resultado significativo nesse caso.
- A inclusão financeira: o impacto mais evidente
Se há um ponto em que não resta dúvida, é na contribuição do Pix para a redução do uso de dinheiro vivo e para a inclusão de milhões de brasileiros no sistema financeiro. Segundo o próprio Banco Central, até dezembro de 2022, o Pix havia sido responsável por incluir financeiramente 71,5 milhões de pessoas, ou seja um terço da população adulta do país.
Essa transformação se explica por um detalhe simples, mas decisivo: antes do Pix, colocar dinheiro em uma conta digital era burocrático. Era necessário imprimir um boleto e pagá-lo em agência ou correspondente. O Pix eliminou essa barreira, permitindo transferências instantâneas entre qualquer conta, de qualquer instituição.
Esse avanço mudou a vida prática do brasileiro que recebia seu salário ou renda em espécie e pagava tudo em papel-moeda. A partir do Pix, ele pôde receber em uma conta digital e usar esse dinheiro para pagar suas despesas por meio do próprio Pix ou de um cartão pré-pago vinculado. Essa é a verdadeira revolução: o Pix nivelou o acesso às contas digitais, tornando-as plenamente funcionais e acelerando a inclusão financeira.
Concluindo, é importante frisar que minhas críticas não diminuem o mérito do estudo de Ornelas e Sampaio. Pelo contrário, reforçam a relevância de trabalhos acadêmicos que se debruçam sobre temas tão transformadores. A ciência cumpre um papel essencial ao organizar dados, testar hipóteses e oferecer interpretações que ajudam a sociedade a compreender fenômenos complexos. O mérito do estudo é justamente trazer novas hipóteses para debate, estimulando análises que complementem a compreensão sobre o impacto do Pix.
Minha leitura é que, em alguns pontos, o estudo atribui ao Pix efeitos que também derivam de outros fatores — em especial da pandemia. Mas não há dúvida de que o Pix foi o motor principal de uma transformação estrutural: reduziu a dependência do dinheiro em espécie, tornou as contas digitais realmente acessíveis e incluiu dezenas de milhões de brasileiros no sistema financeiro nacional.
Essa é a contribuição que permanece e que deve inspirar não apenas pesquisadores, mas também formuladores de políticas públicas em outros países que buscam, como nós, um sistema de pagamentos mais inclusivo, eficiente e universal.

Introdução
Criado há mais de quatro décadas, o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) buscava garantir acesso à alimentação por meio de incentivos fiscais às empresas que oferecessem benefícios específicos, como o vale-refeição e o vale-alimentação. Com o tempo, o que surgiu como política pública de apoio ao trabalhador transformou-se em um mercado bilionário, dominado por poucos players, operando em arranjos fechados, com redes proprietárias e pouca concorrência.
Agora, esse modelo atual começa a ruir — e no lugar dele surge uma nova trilha. Literalmente. Estamos testemunhando o nascimento de uma nova infraestrutura de pagamentos para cartões de benefício, construída sobre os conceitos de interoperabilidade, portabilidade e arranjos abertos. É uma mudança de arquitetura que promete abalar as fundações de um modelo protecionista por design e disfuncional na prática — e que vem sendo impulsionada por novas leis e regulamentações que já estão em curso.
O que é a nova trilha de pagamento
No universo dos pagamentos, o termo “trilha” (ou rail, no jargão técnico) refere-se ao caminho que uma transação percorre desde o ponto de venda até a liquidação entre as partes. Até recentemente, os cartões de benefício seguiam trilhas exclusivas: para que um pagamento fosse aceito, o lojista precisava estar credenciado a um emissor específico, em uma rede específica, com um terminal configurado para um AID específico — o Application Identifier que determina o tipo de benefício processado.
Essa arquitetura fragmentada sempre foi um freio à eficiência e à livre concorrência. Mas as recentes mudanças regulatórias abrem espaço para um novo modelo: uma trilha interoperável, aberta, multibandeira e multipropósito. Em vez de dependerem de arranjos fechados, os cartões de benefício poderão funcionar com bandeiras como Elo, Visa ou Mastercard, serem aceitos em qualquer maquininha e permitir que o trabalhador escolha seu emissor preferido, independentemente do contrato firmado pela empresa.
O que muda na prática
Com a nova trilha, muda tudo — desde o processo técnico da transação até a dinâmica competitiva do mercado.
– Para os estabelecimentos, desaparece a necessidade de firmar contratos com múltiplos operadores de benefício. Basta uma única credenciadora para aceitar qualquer cartão, de qualquer bandeira.
– Para os emissores, surge a necessidade de competir em qualidade, serviço e taxas, já que o consumidor poderá portar seu benefício para outro player.
– Para os adquirentes, abre-se um novo mercado transacional, com volumes relevantes e margens até então inacessíveis.
– Para os arranjos tradicionais, trata-se de uma ruptura direta com o modelo verticalizado, que antes lhes garantia controle sobre a cadeia e margem via subsídios cruzados.
Mas o impacto mais interessante talvez seja sobre a própria lógica do benefício.
A falácia da proteção ao trabalhador
Defensores do PAT frequentemente alegam que o modelo protege o trabalhador, garantindo que os valores recebidos sejam usados exclusivamente para alimentação. Na prática, isso nunca foi verdade.
O consumidor sempre encontrou formas de burlar essa “proteção”, seja adicionando bebidas alcoólicas ou cigarros à compra no mercado, seja repassando o benefício informalmente. Enquanto isso, a existência de intermediários obrigatórios — e a estrutura jurídica que os sustenta — apenas encareceu o custo da alimentação, com tarifas escondidas e descontos aplicados sobre o valor nominal do benefício.
A nova trilha de pagamentos não resolve esse problema, mas expõe sua origem: um sistema excessivamente regulado, que criou distorções sob o pretexto de proteção. Ao abrir o mercado à concorrência e permitir o uso de trilhas tecnológicas modernas, o novo modelo desmascara a artificialidade do arranjo anterior e aponta para uma possível racionalização de todo o ecossistema.
O estágio atual da transformação
Embora a interoperabilidade já esteja prevista por lei (Lei 14.442/22 e Decreto 11.678/23), ainda faltam regulamentações técnicas que operacionalizem a portabilidade e estabeleçam os parâmetros finais da nova trilha.
Alguns players já se anteciparam:
– A Elo, em parceria com iFood Benefícios e SafraPay, realizou a primeira transação de benefício com arranjo aberto no Brasil.
– A Ticket lançou o “Super Flex”, cartão multibenefícios com trilhas distintas (refeição, home office, mobilidade, etc.).
– Fintechs como Flesh, Caju e Swile pressionam por agilidade na regulamentação e transparência no mercado.
Do outro lado, grandes operadoras tradicionais resistem, alegando riscos ao modelo e insegurança jurídica. Enquanto isso, o governo sinaliza intenção de avançar com a regulamentação técnica ainda este ano — inclusive com possíveis tetos de MDR (taxa de desconto) e prazos mínimos de liquidação para lojistas.
Conclusão: uma nova era de eficiência
A nova trilha dos cartões de benefício é, acima de tudo, um vetor de modernização. Ao permitir que os pagamentos fluam por trilhos abertos, interoperáveis e competitivos, o país dá um passo importante rumo à eficiência econômica — e se afasta de um modelo de proteção ineficaz, que só sobreviveu graças à sua opacidade.
Não se trata apenas de mudar o caminho da transação. Trata-se de permitir que cada agente da cadeia — do lojista ao trabalhador — tenha mais liberdade, mais clareza e mais poder de escolha.
Na medida em que os trilhos se abrem, o sistema avança. E com ele, a possibilidade de que o benefício seja realmente… benéfico.

