Introdução
Criado há mais de quatro décadas, o Programa de Alimentação do Trabalhador (PAT) buscava garantir acesso à alimentação por meio de incentivos fiscais às empresas que oferecessem benefícios específicos, como o vale-refeição e o vale-alimentação. Com o tempo, o que surgiu como política pública de apoio ao trabalhador transformou-se em um mercado bilionário, dominado por poucos players, operando em arranjos fechados, com redes proprietárias e pouca concorrência.
Agora, esse modelo atual começa a ruir — e no lugar dele surge uma nova trilha. Literalmente. Estamos testemunhando o nascimento de uma nova infraestrutura de pagamentos para cartões de benefício, construída sobre os conceitos de interoperabilidade, portabilidade e arranjos abertos. É uma mudança de arquitetura que promete abalar as fundações de um modelo protecionista por design e disfuncional na prática — e que vem sendo impulsionada por novas leis e regulamentações que já estão em curso.
O que é a nova trilha de pagamento
No universo dos pagamentos, o termo “trilha” (ou rail, no jargão técnico) refere-se ao caminho que uma transação percorre desde o ponto de venda até a liquidação entre as partes. Até recentemente, os cartões de benefício seguiam trilhas exclusivas: para que um pagamento fosse aceito, o lojista precisava estar credenciado a um emissor específico, em uma rede específica, com um terminal configurado para um AID específico — o Application Identifier que determina o tipo de benefício processado.
Essa arquitetura fragmentada sempre foi um freio à eficiência e à livre concorrência. Mas as recentes mudanças regulatórias abrem espaço para um novo modelo: uma trilha interoperável, aberta, multibandeira e multipropósito. Em vez de dependerem de arranjos fechados, os cartões de benefício poderão funcionar com bandeiras como Elo, Visa ou Mastercard, serem aceitos em qualquer maquininha e permitir que o trabalhador escolha seu emissor preferido, independentemente do contrato firmado pela empresa.
O que muda na prática
Com a nova trilha, muda tudo — desde o processo técnico da transação até a dinâmica competitiva do mercado.
– Para os estabelecimentos, desaparece a necessidade de firmar contratos com múltiplos operadores de benefício. Basta uma única credenciadora para aceitar qualquer cartão, de qualquer bandeira.
– Para os emissores, surge a necessidade de competir em qualidade, serviço e taxas, já que o consumidor poderá portar seu benefício para outro player.
– Para os adquirentes, abre-se um novo mercado transacional, com volumes relevantes e margens até então inacessíveis.
– Para os arranjos tradicionais, trata-se de uma ruptura direta com o modelo verticalizado, que antes lhes garantia controle sobre a cadeia e margem via subsídios cruzados.
Mas o impacto mais interessante talvez seja sobre a própria lógica do benefício.
A falácia da proteção ao trabalhador
Defensores do PAT frequentemente alegam que o modelo protege o trabalhador, garantindo que os valores recebidos sejam usados exclusivamente para alimentação. Na prática, isso nunca foi verdade.
O consumidor sempre encontrou formas de burlar essa “proteção”, seja adicionando bebidas alcoólicas ou cigarros à compra no mercado, seja repassando o benefício informalmente. Enquanto isso, a existência de intermediários obrigatórios — e a estrutura jurídica que os sustenta — apenas encareceu o custo da alimentação, com tarifas escondidas e descontos aplicados sobre o valor nominal do benefício.
A nova trilha de pagamentos não resolve esse problema, mas expõe sua origem: um sistema excessivamente regulado, que criou distorções sob o pretexto de proteção. Ao abrir o mercado à concorrência e permitir o uso de trilhas tecnológicas modernas, o novo modelo desmascara a artificialidade do arranjo anterior e aponta para uma possível racionalização de todo o ecossistema.
O estágio atual da transformação
Embora a interoperabilidade já esteja prevista por lei (Lei 14.442/22 e Decreto 11.678/23), ainda faltam regulamentações técnicas que operacionalizem a portabilidade e estabeleçam os parâmetros finais da nova trilha.
Alguns players já se anteciparam:
– A Elo, em parceria com iFood Benefícios e SafraPay, realizou a primeira transação de benefício com arranjo aberto no Brasil.
– A Ticket lançou o “Super Flex”, cartão multibenefícios com trilhas distintas (refeição, home office, mobilidade, etc.).
– Fintechs como Flesh, Caju e Swile pressionam por agilidade na regulamentação e transparência no mercado.
Do outro lado, grandes operadoras tradicionais resistem, alegando riscos ao modelo e insegurança jurídica. Enquanto isso, o governo sinaliza intenção de avançar com a regulamentação técnica ainda este ano — inclusive com possíveis tetos de MDR (taxa de desconto) e prazos mínimos de liquidação para lojistas.
Conclusão: uma nova era de eficiência
A nova trilha dos cartões de benefício é, acima de tudo, um vetor de modernização. Ao permitir que os pagamentos fluam por trilhos abertos, interoperáveis e competitivos, o país dá um passo importante rumo à eficiência econômica — e se afasta de um modelo de proteção ineficaz, que só sobreviveu graças à sua opacidade.
Não se trata apenas de mudar o caminho da transação. Trata-se de permitir que cada agente da cadeia — do lojista ao trabalhador — tenha mais liberdade, mais clareza e mais poder de escolha.
Na medida em que os trilhos se abrem, o sistema avança. E com ele, a possibilidade de que o benefício seja realmente… benéfico.